Interlúdio: A guerra do Goliad

Byphast não conseguiu segurar o grito de horror quando a imagem na bola de cristal sumiu repentinamente em uma explosão de fogo, gelo, relâmpago e outras energias multi-coloridas. Honoringast, o Vermelho, havia sido arrastado de volta para a esfera prismática pelo druida que havia assumido a forma da grande serpente elemental esculpida em nuvens, vento, chuva e relâmpago, e neste momento seu corpo sem vida devia estar caindo sobre os exércitos da Vaasa que procuravam abrigo contra a tempestade abençoada por Marthammor Duin.

“Isso não muda nada”, disse o Rei Bruxo com sua voz fria e sem emoção, quebrando depois de alguns minutos o silêncio que recaiu sobre a câmara. “Tudo segue conforme o planejado.”

Levantando-se da cadeira, Zhengyi vira-se para Byphast e a olha de alto a baixo.

“Se te preocupa a possibilidade de ser enviada para substituir o vermelho na Damara, não se preocupe, minha cara”, esclareceu ao perceber o temor nos olhos da dragoa. “A Morte Gelada será mais útil defendendo este castelo do que jogada aos lobos na guerra ao sul. Convoque Arctigis e garanta que ninguém se aproxime.”

Respirando fundo, Byphast baixou os olhos e fez uma reverência quando o Rei Bruxo da Vaasa passou por ela a caminho da sala do trono. Em sua cabeça o destino de seu maior rival se repetia continuamente. Se antes não podia esperar por este momento, herdar o posto de dragão mais poderoso sob o comando de Zhengyi, agora o fantasma da dúvida se esgueirava em sua mente: e se a maldita Companhia do Milagre realmente atacasse o Castelo Perilous? Seriam ela e a filha capazes de detê-los?

***

Mathild afundou com o peso do corpo de seu oponente caindo sobre ela. As pedras no fundo do rio arranhavam contra sua cota de malha, e a água misturada com o sangue derramado pelos soldados engalfinhados com as forças da Vaasa a montante de onde ela estava entrava pela sua boca aos borbotões enquanto ela gritava de horror.

Sua espada estava presa entre as costelas do zumbi que ainda vestia os farrapos das roupas das tropas de elite do Rei Bloodfeathers. A jovem sargento reconheceria aquele uniforme em qualquer lugar, pois seu pai havia sido um dos membros daquele regimento até o fatídico dia em que foram emboscados naquele mesmo vau, crentes de que estavam invisíveis aos olhos dos exércitos que os esperavam na outra margem. Agora os trapos se enrolavam em seu braço enquanto ela tentava a todo custo plantar seus pés no fundo do rio e voltar à superfície.

Largando a espada e juntando todas as suas forças, Mathild empurrou o corpo do zumbi rio abaixo e conseguiu ficar de pé novamente, cuspindo água, sangue e, provavelmente, um ou dois dentes, arrancados pelas garras do morto-vivo que rasgara seu maxilar como um arado abrindo a terra fofa na primavera.

Olhando em volta percebeu que o resto de seu pelotão estava segurando bravamente o avanço da horda de zumbis que tentava cruzar o vau para leste da estrada. As águas ali eram bem mais profundas, em alguns pontos chegando a bater no peito dos soldados, que precisavam amarrar pedras em suas botas para não serem arrastados pela correnteza.

Um rugido ensurdecedor sobre sua cabeça quase a fez mergulhar de novo. Os últimos raios de sol que passavam entre os altos picos das Galenas refletiam nas escamas brilhantes de um grande dragão prateado em combate mortal com um vermelho. A mandíbula da besta escarlate estava travada na pata traseira de seu oponente enquanto suas garras tentavam a todo custo rasgar as membranas das asas e retirar de combate aquele defensor das forças da Damara.

A água ao redor de Mathild começou a esfriar repentinamente quando o dragão, a quem ela havia ouvido o Barão se dirigir como Möri, puxava o ar ao seu redor para seus pulmões. Uma explosão de gelo se seguiu quando uma baforada gelada atingiu em cheio o dragão vermelho, congelando imediatamente grandes trechos do rio.

Pensando rápido, Mathild sacou a adaga de sua cintura e subiu em uma placa de gelo que havia se formado ao seu lado. Meio correndo, meio deslizando, a soldado avançou na direção de um grupo de zumbis que havia ficado preso no gelo, indefesos com suas lanças e espadas congeladas sob a superfície. Gritando para que seus companheiros fizessem o mesmo, começou a rasgar pescoços e arrancar cabeças.

***

Möri entrou na tenda de comando das forças da Damara mancando de uma perna. Honoringast fora derrotado, mas o grande vermelho não era o único cromático a serviço do Rei Bruxo da Vaasa. Tanderth, Imracrad e Armontis haviam assumido as funções do pai e agora comandavam os outros dragões que diariamente atormentavam as tropas que corajosamente defendiam o vau do rio Goliad.

O elfo de cabelos prateados segurou a porta de pano para que Adamarondor, Tazmikella e Ilnezhara também entrassem, e percebeu que seus três companheiros também não haviam saído incólumes da última contenda nos céus da Damara. O braço do orgulhoso dourado, que já havia servido como corcel e mensageiro do Magister a mando de Azuth, pendia mole junto a seu corpo, e uma grande mecha dos cabelos cor de cobre de Lady Zee ainda crepitava com a fumaça verde onde o sopro de um traiçoeiro verde havia pegado de raspão. Ele só esperava que seus oponentes tenham voltado para o norte com tantas ou mais feridas que ele e os outros metálicos.

A Companhia do Milagre estava reunida ao redor da mesa, observando atentamente os mapas que Numspa havia desenrolado e segurado aberto com algumas pedras. Sentados em bancos de madeira, Tranth e Quillan conversavam baixinho. O velho barão parecia cansado, e seu conselheiro, apesar de regular de idade com o amigo, oferecia um ombro para que ele se apoiasse.

Pelo que podia ver nas peças que representavam os exércitos sobre o mapa, os apelos ao barão de Morov caíram em ouvidos vazios. Que Dimian Ree ainda não houvesse decidido qual lado apoiar era pelo menos um sinal de que as forças da Vaasa não estavam tão próximas assim da vitória, ou o astuto governante que ocupava o trono em Heliogabalus já teria se declarado pelas forças invasoras.

Pouco mais de uma semana havia se passado desde que o grande vermelho havia caído e o segundo grande confronto naquele local havia se iniciado. O primeiro se arrastou por uma década, afundando toda a região em uma era de trevas e sofrimento que culminou com a derrota das forças da Damara.

As batalhas têm sido ferrenhas, mas as forças da Damara conseguem resistir bravamente. Para cada pedra arremessada pelos gigantes do gelo, duas outras eram devolvidas através dos grandes trebuchets construídos pela engenhosidade dos anões engenheiros do Clã Orothiar. Os druidas enviados pelo Nentyarcha se revezavam em impedir o avanço das ondas de mortos-vivos que, sem a necessidade de respirar, tentavam cruzar o rio pelos lados mais fundos. Os bravos soldados de Bloodstone, Arcata, Carmatha, Ostel e Polten, cada vez mais se reconhecendo como defensores não mais de suas províncias, mas de um estado da Damara, encaravam as investidas pelo meio do rio.

Mas quando as pedras que cruzavam os ares eram numerosas demais. Quando as hordas de mortos-vivos, orcs, goblins, bárbaros e gigantes rompiam as linhas defensivas. Quando tudo mais parecia perdido, os heróis da Companhia do Milagre intervinham para salvar as forças da Damara da ruína.

Sob o comando de Noran e inspirados pela ferocidade de Tass, as tropas ignoravam o horror nas orbes negras dos mortos-vivos e encontravam forças para defender sua pátria da invasão das forças da Vaasa. Liderados por Erevan e Fajr, os druidas do círculo de Leth e os gênios do palácio dos ventos do Sul jogavam as próprias forças dos elementos e da natureza contra seus oponentes. Tau e Naugrin invocavam os poderes de seus deuses para curar os feridos e queimar com a fúria radiante de Tyr e Marthammor Duin os mortos-vivos sob o comando de Zengyi. Numspa corria por sobre as águas do Goliad e jogava correnteza abaixo colunas inteiras de orcs e goblins que arriscavam a travessia, e Neurion arremessava bolas de fogo, setas de gelo e raios de energia solar contra todos que conseguissem escapar.

Porém, nem todos os meteoros, intervenções divinas ou investidas de poderosos elementais eram capazes de infligir um golpe mortal na horda que ocupavam a calha norte do Goliad. Todas as noites os exércitos da Damara apenas podiam se resignar a observar os corpos se erguendo do campo de batalha e cambaleando para as fileiras da Vaasa. Corpos de orcs e goblins, corpos de gigantes, corpos de mortos-vivos. Fossem apenas os corpos dos oponentes, os soldados conseguiriam dormir melhor durante a noite. Mas entre os corpos que se erguiam para engrossar os exércitos do Rei Bruxo também encontravam-se faces conhecidas: soldados da Damara que caiam em combate voltavam como mortos-vivos para enfrentar seus antigos companheiros.

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