A sala fica em silêncio depois que Darlienne termina de contar sua história, quebrado apenas pelo crepitar do fogo na lareira e pelo som ocasional de colherzinhas esbarrando na borda das xícaras.
“Tomates!” Hilda Tealeaf exclama de repente, com uma fungadela ofendida. “Francamente.”
As outras olham para ela e a halfling baixinha, miúda mesmo pelos padrões dos halflings, completa:
“Quem começa uma rebelião com tomates?”
“Humanos, aparentemente,” diz Elanor QuickShadow, mexendo seu chá.
“Crianças,” suspira Darlienne.
“Homens,” acrescenta Portia GoodGrass, e as cinco feiticeiras reviram os olhos.
“Não que eu tenha um grande apreço por Dashard Devlin,” diz Darlienne, deliberadamente usando o nome de batismo do atual governante de Carmathan ao invés do auto-proclamado título de Helmont XIV. “Ou mesmo um pequeno apreço.”
“Ou qualquer tipo de apreço,” resmunga Lavínia Millbridge antes de se servir de mais um pedaço de queijo orthin.
“A questão é,” Darlienne prossegue, respondendo com um aceno de cabeça ao comentário da amiga, “suponhamos que ele seja deposto…”
“Através dos mesmos métodos pelos quais seu antecessor foi ‘deposto‘,”observa Portia, enfatizando a palavra formando aspas com os dedos.
“Que ele seja ‘deposto‘,” repete Darlienne fazendo o mesmo gesto, “ou que eu ajude a ‘depô-lo‘. E aí? O que acontece em seguida? Todos os nossos problemas se resolvem e a paz reina para sempre em Carmathan?”
Elanor bufa e pousa sua xícara sobre a mesa com um cadinho mais de força do que o necessário.
“Sinceramente,” prossegue Darlienne, “eu espero que sim, porque pelo que eu vi até agora não me parece que nenhum desses rebeldes tenha planejado além desse ponto.”
“Eu sei que deveria estar mais bem informada sobre esses assuntos,” diz Hilda de forma apologética, “mas não estou, então me digam: depois desse menino Dashard, quem é o próximo na linha de sucessão?”
“Ele é o último membro da casa de Devlin,” diz Darlienne, dando de ombros, “então eu suponho que qualquer uma das outras casas nobres de Carmathan poderia reivindicar o trono.”
“E esse rapaz da casa de Grayson que está sendo apontado como outro dos líderes da rebelião?” pergunta Lavinia, empurrando os óculos que insistem em escorregar para a ponta do nariz. “Ele também estava naquele jantar fatídico quando tudo começou, não?”
“Ah, pelo amor de Yondalla!” exclama Elanor. “Sou só eu que vê que, se a casa de Devlin cair, Arcata vai estar em cima de nós na mesma hora? Eu não ficaria surpresa,” ela continua, sacudindo com veemência a colher de chá, “se eles estiverem incentivando essa rebelião, contando justamente com essa característica dos humanos de sair fazendo as coisas sem se planejar.”
“Elanor, querida,” Portia interrompe gentilmente, apontando para um ponto acima da cabeça da amiga. “Você está fazendo aquilo de novo.”
“Eu… Ah.” Eleanor ergue os olhos e vê o pequeno redemoinho de flocos de neve que se formou no ar um pouco acima de sua cabeça. “É, parece que estou.”
As outras feiticeiras, já acostumadas com as manifestações da magia que corre nas veias da amiga, sorriem pacientemente enquanto ela abana a mão na direção do redemoinho.
“Xô, xô,” diz Elanor, enquanto os flocos de neve desaparecem no ar e o redemoinho se desfaz.
“Ainda temos chá?” Hilda se volta na direção de Lavinia depois que os últimos flocos de neve se vão.
“Que pergunta,” diz Lavinia com um sorriso. “Portia, você me faria a gentileza?”
Enquanto Portia enche novamente as xícaras que são prontamente estendidas em sua direção, Lavinia vai enumerando nos dedos:
“O que sabemos, então? Que todos os membros da casa de Devlin foram assassinados na mesma noite.”
“Exceto,” Darlienne acrescenta, “coincidentemente — vamos chamar de coincidência por enquanto — Dashard.”
“Sabemos também,” prossegue Lavinia, “que o referido Dashard, ao invés de investigar o assassinato de toda a sua família, iniciou imediatamente uma campanha difamatória contra quatro cidadãos inocentes.”
“Temos certeza de que esta campanha difamatória partiu dele?” Hilda interrompe, e quatro olhares inquisidores se voltam imediatamente para Portia. Portia e sua rede de contatos: se a origem de um rumor tem como ser rastreada, Portia conhece alguém que conhece alguém que conhece alguém.
“Partiu dele,” Portia confirma com ar grave.
Darlienne suspira, sacudindo a cabeça, e Hilda estende uma mão solidária e a pousa sobre o braço da amiga enquanto as outras expressam sua desaprovação quanto à atitude do novo duque com resmungos e estalar de lábios.
“Tecnicamente, isso ainda não faz dele um usurpador. Mas,” Lavinia acrescenta rapidamente, erguendo um dedo gordinho no ar antes que as outras possam protestar, “se nós acreditamos que ele foi responsável, ainda que indiretamente, pela morte de todos os que estavam entre ele e o título…”
“E acreditamos,” Elanor afirma com firmeza e quatro cabeças brancas acenam solenemente em concordância.
“É como, guardadas as devidas proporções, danificar propositalmente uma mercadoria no mercado para depois comprá-la com desconto. A pessoa não apenas perde o desconto, mas ainda é culpada de danificar propriedade alheia.”
“Sabemos também,” Portia acrescenta enquanto Lavinia prossegue contando nos dedos, “que está ocorrendo uma movimentação no sentido de depor Dashard.”
“Movimentação essa na qual a minha única participação foi ter estado no lugar errado na hora da errada,” Darlienne resmunga, mexendo sua xícara de chá e olhando para ela com ar carrancudo.
“Nós sabemos disso, querida,” Portia disse com gentileza. “Mas você sabe como esses meninos são. Sempre à procura de um herói para seguir.”
“E sabemos também como você é, ‘Lienne,” Hilda diz com um sorriso. “Você não vai ter paz de espírito enquanto esses meninos estiverem por aí brincando de rebelião e se metendo em encrenca porque acham que é isso que os seus grandes líderes revolucionários esperam deles.”
“Não, não vou,” Darlienne diz com um suspiro resignado. “Além disso, eu detesto dizer isso mas Elanor está certa,” ela acrescenta olhando para a amiga, que revira os olhos como quem sabe que está sempre certa. “Se Dashard cair sem um sucessor pronto para assumir o seu lugar no governo de Carmathan, Arcata vai cair sobre nós como um bando de worgs sobre um urso ferido. Eu preciso dar um rumo nessa rebelião e consertar essa bagunça.”
“Eu discordaria de você se pudesse,” diz Portia, estendendo a mão e dando um tapinha carinhoso na mão da amiga, “mas receio que seja isso mesmo.”
Darlienne coloca sua mão sobre a mão de Portia e retribui o sorriso da amiga antes de se voltar novamente para Elanor:
“Então, madame historiadora, o que você me diz das outras casas nobres de Carmathan? Quem lhe parece o herdeiro mais apropriado para o título, o que tem mais chance de inspirar o povo?”
“Eu admito que já andei pensando no assunto desde que essa confusão começou,” diz Elanor. “Acho que a casa de Grayson é uma das que tem raízes mais profundas e a que inspira mais lealdade entre a população. Talvez não Lorde John pessoalmente, mas alguém que ele indique.”
“E esse rapaz que está foragido juntamente com Darlienne?” pergunta Hilda. “O que tem o guarda-costas dragonborn?”
“Não é muito jovem?” pondera Portia.
“Talvez,” diz Elanor. “Mas me desagrada principalmente a ideia de fazer uma rebelião contra quem mandou matar o duque anterior para tomar seu lugar quando um dos rebeldes está ali justamente para… matar o atual duque e tomar seu lugar.”
“Também não gosto disso,” assente Darlienne. “Dá um ar não tanto de preocupação com a legitimidade da posição do atual duque e sim de insatisfação por não fazer parte das altas rodas do poder.”
“Você não acha que ele…?” Lavinia pergunta, chocada.
“Não acho, “ diz Darlienne. “Mas daria essa impressão, e eu não pretendo me associar a isso.”
“Bem, deve haver outras pessoas na casa de Grayson que poderiam assumir o título,” diz Portia.
“Acredito que sim,” diz Elanor. “Eu recomendaria,” ela continua, se voltando novamente para Darlienne, “que vocês enviassem uma mensagem para Lorde John — imagino que o filho saiba como fazer isso, mesmo estando foragido — para que ele já comece a refletir sobre o assunto.”
Darlienne concorda com a cabeça, mexendo pensativa a sua xícara já praticamente vazia,
“Parece, “ ela diz com um sorriso resignado, “que ainda vai demorar um pouco para tomarmos chá juntas novamente na Baixada.”
“Então vamos fazer este aqui render,” diz Portia com um sorriso.
“Sem dúvida,” diz Lavinia, estendendo a mão para uma bandeja que até então estava sobre uma mesa lateral, coberta por um guardanapo.
“Eu ainda nem tinha mostrado a minha surpresa!” ela exclama com ar triunfante, puxando o guardanapo com um floreio e expondo cinco muffins de uva “blue eye” que provocam exclamações de surpresa e prazer nas demais.
“Você está certíssima,” diz Darlienne pegando um dos muffins. “Chega desse assunto.”
“Falemos de coisas boas,” diz Elanor antes de dar uma boa dentada no seu.
“Falemos de coisas de halfling,” diz Hilda com um sorriso largo.
“Falemos de… Ah!” Darlienne exclama ao se lembrar. “Eu tenho uma coisa pra contar!”
Ela sorri diante dos quatro pares de olhos curiosos que se viram para ela e começa: “Vocês se lembram da Mirna, que morava perto de mim?”
“Não era ela que tinha um filho sem juízo, Milton?” pergunta Lavinia.
“Milo,” corrige Darlienne, enquanto as quatro feiticeiras halflings se inclinam em sua direção, os olhos brilhantes na antecipação de uma boa história. “Pois então, eu estava há algumas semanas em uma estalagem ali perto de Ravensburg quando…”