Tendo esquadrinhado as profundezas do poço, tentando em vão discernir alguma forma ou movimento na escuridão, Fajr recua lentamente a partir da beirada e se volta para a djinn.
— Então você é… — ela hesita na palavra que até então nunca tinha aplicado a ninguém — … você.
Zahirah sorri e responde com leveza e doçura em sua voz — Essa resposta somente você pode dar. Eu sei quem sou. Sou Zahirah, Sultana do palácio dos ventos do Sul, a Brisa fresca das manhãs, conselheira do Grande Califa de Huzuz, Fonte do Sopro da vida, a Ruína de Ishistul… tenho muitos títulos e nomes. Você é minha filha, mas não tenho como ser chamada de sua mãe. Esse título só você pode conceder, se assim um dia desejar.
Fajr não responde imediatamente. Ao invés disso, ela segura delicadamente o amuleto, mantendo os olhos fixos nele enquanto o gira entre os dedos.
— Você esteve aqui esse tempo todo? — ela finalmente pergunta, olhando novamente para Zahirah com ar ressabiado.
Zahira suspira em busca das palavras que formem uma resposta breve:
— Sim… E Não. Me confinei dentro deste amuleto como forma de te proteger de Ishistul. Eu sabia que um dia, apesar de todo meu esforço ele chegaria até você, pois aquele não conhecia limites exceto este que lhe demos, sua morte. Contudo apesar de estar muito próxima a você, eu só podia sentir empaticamente o que você sentia, não tinha consciência do que ocorria com você. Ao menos pudemos nos falar em sonhos, embora eles fossem soprados de sua memória a cada despertar.
De dentro deste amuleto, segui governando o palácio dos ventos do Sul, mas eu estava presa por vontade própria nesta pequena dimensão.
— Eu me lembrei hoje… Mais cedo, de um sonho. Você estava lá, com a minha cítara. — a mão livre de Fajr se move automaticamente para tocar no instrumento, que ela traz sempre junto de si, preso a tiracolo por uma correia. — Mas não foi só um sonho, foi? Foi o dia em que você foi embora. — ela olha para o amuleto novamente, franzindo o rosto. — Ou não foi.
— Isso é confuso, — suspira a jovem genasi.
– Foi uma lembrança. Ativada como contingência pela proximidade de Ishistul. É possível que algumas outras lembranças de nossas conversas em sonhos comecem a retornar com o tempo para você, se você buscar deixar seu coração aberto para elas.
Tempo pode ser seu grande aliado e, ao mesmo tempo, seu impiedoso juiz. Não tenho muito mais tempo para dispor com você neste momento, pois a força que me empurra para fora desta dimensão está ganhando terreno.
— Ah. — Fajr olha em volta, parecendo quase surpresa ao se lembrar de onde elas estão. — Certo. Sim, eu também preciso ir daqui a pouco. — ela lança um olhar rápido na direção do poço onde o servo de Thasmudyan desapareceu há alguns instantes. — Coisas a resolver.
— Então, hum… — ela evita o olhar de Zahirah enquanto coloca o amuleto de volta no lugar, aninhando-o cuidadosamente entre as dobras da abaia. — O que acontece agora?
– Acontece o que você desejar que aconteça, filha. Agora tanto você quanto eu estamos livres da ameaça que Ishistul representava e podemos seguir o fluxo de nossa existências. Vou deixar um de meus guardas para auxiliá-la em sua jornada, quando for preciso, basta soprar o amuleto e ele virá ao seu encontro. Seguirei de volta ao palácio dos ventos do Sul no plano do ar e continuarei a visitar regularmente a corte do grande califa de Huzuz, na terra de Zakhara. Você pode ir para onde quiser, mas lembre-se que seus caminhos se cruzaram com os desta companhia e seu destino lhe apresentou uma grande ameaça à liberdade desta terra e da própria terra de onde esta companhia vem. Não acredito que tenha sido por acaso, que uma alma que preza tanto a liberdade como a sua, esteja com a oportunidade de lutar pela liberdade de tantos outros que não tem como se defender.” – Um vento forte envolve Zahira fazendo com que ela vá se dispersando no ar como uma nuvem que se desfaz, a gênio sorria e segue dizendo – “estou sendo empurrada para fora deste plano, Fajr. Faça o melhor uso do seu tempo que puder, viva, cante, encha o ar com sua música! No dia em quiser me reencontrar, siga a brisa que vem do Sul em Toril, em direção à Zakhara, até a grande Huzuz. Essalam alekoom!”- logo após essas palavras, seguidas de um beijo soprado, Zahira desaparece em pleno ar. O breve encontro traz uma reflexão. Zahira é um ser imortal e pode esperar o quanto for preciso.
Fajr fica em silêncio, olhando para o local onde a djinn acabou de desaparecer.
Após alguns instantes, ela murmura:
— Wa alekoom essalam… ‘um.
A seguir, a genasi ajeita as dobras da abaia em torno do amuleto uma última vez e volta sua atenção para os integrantes da Companhia do Milagre e para o novo problema com o qual eles têm que lidar agora.