Interlúdio: Todos os caminhos levam à Damara

As ondas empurram o bote até a praia, e dois marujos pulam na areia puxando uma corda para segurar a embarcação. Os passageiros desembarcam sob uma fina chuva, que certamente mais tarde se transformará em neve. O inverno já se aproximava do fim, mas nas terras geladas do norte ele demorava para abrir mão de sua influência.

Marglor leva Rose Marie no colo e a deposita com cuidado na areia gelada, mas sem largar do seu braço. Já no final da gravidez, os Cambions preferem garantir que ela e o “irmão” que carrega em seu ventre cheguem intactos até o Rei Bruxo. A moça, cansada demais e já sem forças para tentar fugir, se resigna a olhar em volta com seus olhos apáticos.

Um grupo de cavaleiros se aproxima vindos do norte, e Orfeo faz sinal para eles com uma tocha. O agente da guilda de ladrões de Westgate respira aliviado, sua missão prestes a ser concluída com sucesso. As últimas semanas acompanhando o par de demônios e a garota haviam sido tão monótonos quanto tensos, uma sensação de horror permeando o fundo de sua consciência constantemente. Alguma coisa lhe dizia que essa sensação terminaria quando não estivesse mais perto do que quer que estivesse dentro daquela barriga.

O líder dos cavaleiros, envolto em uma grossa capa negra, quase cai do cavalo quando o animal freia bruscamente ao se aproximar do grupo na praia. Seus companheiros, alertados de antemão, desmontam um pouco mais distantes, e continuam o resto do caminho a pé.

“Bom vê-lo de novo, Karnak. Espero que os rumores sobre sua vida miserável na cidade-fortaleza de Ilmwatch tenham sido nada mais que isso, rumores.” A rivalidade entre Orfeo e Karnak vinha de longa data, desde uma infância dura no submundo de Westgate.

Abaixando o pano que protegia seu rosto do vento, Karnak apenas rosna para o companheiro de guilda, voltando-se para o maior dos dois demônios que os aguardavam. Rhazien, com seus mais de dois metros de altura e pele negra como a noite, era decididamente ameaçador, mas o agente dos Night Masks não parecia intimidado.

“Espero que tenha trazido aquilo que seu líder nos prometeu, ladrão. Não temos mais tempo a perder”, perguntou o Cambion com sua voz profunda e rascante.

Karnak entrega ao demônio a caixa de madeira que havia trazido em um alforje.

“Conforme combinado, os três amuletos estão aqui dentro. Nossos contatos na igreja de Mask nos garantiram que são fortes o suficiente para aquilo que planejam.”

Rhazien abre a caixa e observa os olhos embalsamados presos em correntes de couro cru, que pelo cheiro e aparência aveludada devem ter sido retirados de uma daquelas panteras esquivas que espreitam nas montanhas das terras do sul. Satisfeito com o que encontrou, guardou a caixa e deu um sorriso tenebroso, suas presas protuberantes refletindo a luz bruxuleante da tocha.

“E quanto ao transporte para o norte?”, perguntou o demônio.

“Foi mais fácil do que imaginávamos, para ser honesto. Um bando de ciganos concordou em transportá-los até Trailsend,” respondeu Karnak. “Com a turba de refugiados fazendo o caminho oposto, eu temia que nenhuma caravana estivesse subindo o Caminho dos Mercadores, mas este bando praticamente implorou para levá-los.”

O Cambion olhou desconfiado para o ladrão. “E como você pode ter certeza que não é uma armadilha? Quem estaria tão interessado em transportar um grupo como o nosso para dentro de um reino em guerra?”

“Não se preocupe, nossas fontes em Westgate utilizaram todos os nossos recursos para garantir que nada aconteça de errado. Esse bando passou em todas as nossas averiguações.”

“Com tanto em jogo, espero que você esteja certo. Ao menor sinal de traição, a última coisa que sentirá serão minhas garras rasgando sua garganta.”

Passando a mão no pescoço, Karnak engole em seco. “O pagamento de Lady Lillith e as promessas de negócios futuros são mais do que garantia de que vocês tem todo o suporte e apoio de nossos agentes.”

Dando de ombros, Rhazien acena para seu irmão, que leva Rose Marie até um dos cavalos. Pouco depois o bando segue sua viagem. Orfeo observa o grupo sumir na escuridão e ordena que os marujos o levem de volta ao barco. A viagem de volta para Westgate seria mais agradável agora que estava livre daqueles três.

***

“Rumamos à Damara com a garota grávida e a Companhia do Milagre em nosso encalço. Vossa majestade pode ter ambos se a recompensa for justa.”

Tão logo a voz incorpórea terminou sua mensagem Zhengyi já conjurava um feitiço para determinar de onde partiu a magia de comunicação. Os gestos foram precisos, nenhuma invocação precisou partir de seus lábios ressecados como folhas de pergaminho em decomposição. Mas nenhuma resposta surgiu em sua mente.

Surpreso, mas ao mesmo tempo entretido pela ousadia daqueles que tiveram a audácia de entrar em contato daquela maneira com o Rei Bruxo da Vaasa, emitiu uma resposta breve antes que a janela da magia expirasse.

“Cumpram o que prometem e serão recompensados.”

Os sacerdotes, conselheiros, demônios e lacaios que rodeavam o grande trono de ossos no coração do Castelo Perilous se entreolharam sem entender o que havia acontecido.

Zhengyi permaneceu em silêncio por mais alguns minuto, ponderando o significado daquela mensagem. A garota, aquela mesma que um dia estivera naquele mesmo salão, praticamente em suas garras, apenas para ser subtraída por um bando de aventureiro.

Ele se lembrava da energia que a envolvia, a mesma energia que havia destruído a arma do anão que tentou tirar-lhe a vida. Desde aquele dia havia tentado encontrá-la novamente, mas algo o impedia. Era como tentar observar algo através de brumas espessas, o que era mais um indício de que os experimentos que ordenara em Baldur’s Gate quase 10 anos atrás haviam dado frutos.

Um dos conselheiros criou coragem o suficiente, e com uma voz tímida ousou uma palavra.

“Senhor?”

O Rei Bruxo levantou os olhos e voltou seus pensamentos para o conclave de guerra.

“O general Sanguine recebeu suas ordens então? Nossas forças estarão prontas?”

“Sim, vossa majestade, as tropas estão prontas conforme seus desejos”, respondeu o conselheiro.

“Excelente. Uma nova oportunidade acaba de se apresentar, mas os planos originais seguem inalterados. Informe a Cidadela dos Assassinos para dar prosseguir com suas ordens. Eu parto ao amanhecer, minha presença na Damara se faz necessária”, termina o Rei Bruxo voltando-se para Byphast, que parecia entediada em um canto do salão.

O dragão branco em forma de elfa faz uma reverência e encaminha-se para seus aposentos. A viagem será longa mas a oportunidade de esticar suas asas será bem vinda.

***

Marglor já havia tratado com demônios de todas as classes, mas a voz de Zhengyi, o Rei Bruxo da Vaasa, ecoando em sua mente foi algo que gelou o sangue demoníaco em suas veias. O amuleto em seu pescoço ainda tremia com a força do feitiço que tentou discernir sua localização, e o mesmo acontecia com aquele em volta do pescoço de Rhazien, mesmo que ele não tivesse participado da magia de comunicação.

Curiosamente, o medalhão de Rose Marie mostrava-se incólume. O Cambion baixou seus olhos para a barriga da garota, desconfiado de que estavam lidando com algo mais poderoso do que imaginavam.

Mas o importante é que os medalhões haviam funcionado, e o Rei Bruxo não havia simplesmente se teleportado para o acampamento e levado a garota.

Uma batida na porta da carroça chama sua atenção. Abrindo apenas uma pequena fresta, vê um dos ciganos com uma bandeja de comida no ombro.

“Jantar, senhores, como haviam solicitado.”

O Cambion pega a bandeja e novamente fica incomodado com a atitude despreocupada dos ciganos na presença dele e de seu irmão. Quem quer que fossem esses tais Vistanis, havia mais sob a imagem que passavam para o mundo do que permitiam transparecer.

***

O conselheiro Felix correu pelos corredores do palácio em Heliogabalus com o embrulho cuidadosamente acomodado debaixo de seu braço. Como prometido, o mensageiro havia entregue a urna naquela noite, e o rei deveria ser informado imediatamente.

Nos aposentos reais Virdin Bloodfeathers quebrou o lacre da urna e retirou lá de dentro uma varinha de prata ornada com delicados filigranas. Observada contra a luz o enigmático objeto parecia translúcido.

As mãos do rei tremiam, pois empunhavam nada mais nada menos do que o objeto que iria garantir o fim da guerra que já se arrastava por uma década

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